02/11/19

Jorge de Sena (1919-1978)

No Centenário do seu nascimento


«QUANDO HÁ TRINTA ANOS...»

Quando há trinta anos comecei a publicar,
tentaram assassinar-me com o hermetismo.
Depois, quando se soube que eu sabia inglês,
com insinuações de que eu copiava o Eliot.
A seguir, como eu fazia crítica, tentaram
uma outra táctica: a de louvar-me
a crítica para diminuir a poesia
ou vice-versa. Quando publiquei Pessoa
passei a ser discípulo de Pessoa. Mas,
logo que foi público que eu estudava o Camões,
a crítica notou logo a camonidade dos meus versos.
Já fui mesmo dado como discípulo
do Padre José Agostinho de Macedo
E sou clássico, barroco, romântico,
discursivo, surrealista, anti-surrealista,
obnóxio, católico, comunista,
conforme as raivas de cada um.
Tem havido também outros jogos: por exemplo,
convidar - com êxito - os meus amigos
a colaborar nas revistas a que me convidam,
suprimir-me em antologias ou referências,
ou só incluir-me nelas com discretos insultos.
Como nada disto funcionava, aplicaram
o tratamento do silêncio, só quebrado
por alguns palhaços demasiado ingénuos nas suas fúrias.
Também não deu resultado. Então
vieram das Casbahs ordens expressas
para um ataque geral. Todos os meus amigos
e admiradores estão compungidíssimos,
mas nenhum se atreve a abrir a boca,
tal é o medo que têm à galfarraria à solta.
Já vi desfeito em baba de doença
o primeiro crítico, o de hermetismo,
que não era má pessoa. Os outros
é fácil saber em que hão-de acabar,
se não os vir, como já vi alguns,
transformarem-se com o tempo em meus
amigos e admiradores, ou em altos funcionários,
distraídos felizmente do exercício das letras.
Não é propriamente que eu seja a caravana
e aquela tropa os cães das gerações
Oh não. Nem eu camelo, nem eles só cães.
Siamo tutti portoghesi, tutti portoghesi -
- n'est-ce pas (na língua nacional dos litras)?

14/Dez./71

Jorge de Sena, Visão Perpétua, Lisboa, INCM, 1982, p. 151-152

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