25/04/20

Júlio Couto (1935-2020) 

AUTORRETRATO

“Sempre fui uma pessoa de exterior. O meu primeiro emprego foi andar a acarretar sacos de cimento. Depois fui para um escritório no Muro dos Bacalhoeiros, para os recados. Era eu que fazia o serviço externo todo. A minha falecida mãe era modista, mas já no tempo da escola primária quem fazia as coisas externas era eu: ia forrar os botões, buscar amostras, buscar tecidos... A minha mãe era assim: a casa é das mulheres, a rua
dos homens.”

“A determinada altura comecei a ver que nunca mais me safava, tinha 15 anos e achava que ia morrer nos recados. Lá no escritório havia máquinas de escrever, cada uma com o seu tipo de teclado. Os três teclados que existiam na altura. O escritório só abria às nove e meia, mas eu às nove horas já lá estava. Entrava com a senhora da limpeza, e lá ia eu ver como é que se escrevia naquilo. Resultado: passado algum tempo, conseguia escrever em qualquer teclado. Até que comecei a pensar que o meu futuro ia ficar confinado a muito pouco. Decidi ir estudar.”

“Fui estudar à noite. Fiz o curso comercial e já garimpava. Deixei de andar aos recados, passei a trabalhar na secretária, daquelas de tampo inclinado, e fui subindo. Passei a ser um homem de confiança. A firma tinha minérios, e isso obrigava muitas vezes a movimentos avultados para a época. Eu ganhava 850 escudos e de vez em quando tinha de ter 200 contos em notas, para irem lá buscar para levar para as minas. Vinha cá um senhor, que me telefonava a dizer que precisava de 200 contos em notas de 20, 50, 100 e algumas de 500. Eu telefonava para o banco, dizia como queria o dinheiro e depois ia lá com uma mulher com um cesto de carvão à cabeça. Chegava, conferia o dinheiro e colocava-o dentro do cesto, depois punha jornais em cima, umas cordas e a mulher ia com o cesto à cabeça, pela Praça fora, e eu atrás dela até à Ribeira. Comecei a estudar outra vez e a determinada altura já era guarda-livros, depois técnico de contas e depois economista.”

“Quando fui trabalhar para o cimento, com 14 anos, já tinha a mania dos livros. Uma vez comprei um livro, ali na Rua do Almada, a Crónica de D. João I. Só que depois faltavam uns cadernos e fui ao editor, a Civilização. Olhe, eu comprei este livro, faltam uns cadernos, por acaso não terão por aí algum caderno destes? O senhor disse que não, que isso era da gráfica. Até que outro senhor, que estava lá no fundo, veio até à minha beira: você gosta desse livro? Gosto, mas falta-me o outro volume. Perguntou-me quanto gastava por mês em livros, ao que respondi ‘vinte, trinta escudos’. Perguntou-me se queria fazer um contrato: fornecia-me os livros todos que me faltavam dessa colecção e eu pagava-lhe vinte escudos por mês. Mas o senhor não me conhece, disse eu. E ele: está bem, mas estou a conhecê-lo agora. Quando cheguei a casa, ia levando uma tareia da minha mãe, porque tinha lá um caixote de livros.”
“Havia uma tradição extraordinária, que eram as tertúlias, nos cafés, ao fim da tarde. Nessas tertúlias, discutíamos as coisas mais impressionantes, entre as quais literatura. Estive sempre envolvido e ligado às Letras.”

“Sempre me interessei pela história da cidade. A minha ex-mulher dizia que eu tinha um gosto de tal modo pela cidade que quando faltava uma pedra ia queixar-me à Câmara, porque eu tinha-as todas numeradas.”
“O interesse pela cidade nasceu porque eu vivo cá, nasci cá... O Germano Silva conta isso com muita graça. O Germano andou comigo na escola primária. Íamos jogar futebol, ‘muda aos seis acaba aos doze’, e quando não havia gente que chegasse, perguntavam: Ó Júlio, o que é que vamos ver hoje? E lá íamos nós, eu a falar do ‘Desterrado’, com dez anos... Estudava uma coisa de cada vez. Acabava e vínhamos embora.”
“Tenho, há quatro anos e meio, um programa de divulgação de poesia na Rádio Cinco. Durante um ano inteiro fiz um programa sobre a cidade do Porto, no Porto Canal. Noutro ano inteiro fiz um programa sobre fado, também no Porto Canal. Mas continuo ligado a tudo quanto seja cidade do Porto, sempre.”

“Costumo dizer que o Porto é uma mulher. Eu, o Germano [Silva] e o Hélder [Pacheco], cada um pega-lhe por onde lhe dá jeito. Somos três, mas a mulher é a mesma.” (daqui)

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