Sondagem
O carteiro, conversador amável, não gosta
de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o
seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo
algum jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor
recebe, ler tudo isso deve ser de morte!
Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se admira:
─ Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que tem no miolo?
─
Em primeiro lugar, Teodorico, nem sempre eu guardo. Às vezes dou aos
amigos, quando há alguma coisa que possa interessar a eles.
─ Mas como sabe que pode interessar, se não leu?
Esclareço
a Teodorico que não leio de ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso,
leio uma página ou umas linhas, passo os olhos no índice, e concluo.
Meu
crédito diminui sensivelmente a seus olhos. Não lhe passaria pela
cabeça receber qualquer coisa do correio sem ler inteirinha.
─ Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?
─
Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do
seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.
─ Eu também leio aquilo que me interessa.
─ Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.
─ Bem, faz-se o possível, mas...
─ Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.
─ É.
─ Mas quem escreveu, coitado! Esse perdeu o seu latim, como se diz.
─ Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado.
A idéia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.
─ Não leva a mal?
─ Não levo a mal o quê?
─
Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção ainda nos
livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e pede licença para
contar um desgosto de família, uma dor forte, dor-de-cotovelo, vamos
dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal dele com todo o
acatamento?
─ Teodorico, você está esticando demais o meu
pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor, ainda
ontem você me trouxe uma publicação do Itamaraty sobre o desenvolvimento
da OPA, * que drama de sentimento há nisso?
─ Bem, nessas condições...
─
E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro o camarada
desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou não, isso é outra
coisa.
Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu
meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar muitos
livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam integralmente.
─ Tem razão. Não adianta mesmo escrever.
─ Como não adianta? Lava o espírito.
─
No meu fraco raciocínio, tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser.
Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos
dizer, eu, só para armar um exemplo, se eu escrevo um livro, deve
existir um outro ─ o senhor, numa hipótese ─ para receber e ler esse
livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse
esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.
─ Teodorico! Você... escreveu um livro?
Virou o rosto.
─ De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.
─ Escute aqui, Teodorico...
─
Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os
defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!
Andrade, Carlos Drummond de (1963) - A Bôlsa & A Vida - 2.ª edição, p. 74 a 77.
Delicioso este trecho. Não conhecia. :))
ResponderEliminarAna, todo o livro é uma delícia!!
ResponderEliminarAinda li muito pouco, mas apetece devorá-lo!
Um beijinho.:))
Fez-me lembrar o carteiro de Pablo Neruda.
ResponderEliminarTambém não conhecia, mas parece muito giro!
Um beijinho
O livro é muito interessante, Isabel.
ResponderEliminarEstou a gostar muito de o ler.
Beijinhos.:))